Documentário da Apple TV desvenda a fascinante vida do restaurateur, escritor e apresentador de TV
Anthony Bourdain teve uma trajetória que não cabe em um livro-texto de Stanford ou de Harvard. Montou um grupo de gastronomia, entre um restaurante estrelado, livros e programas de TV, sem a pujança digna de grandes negócios e construiu uma vida pautada pela livre escolha, compulsão, perfeccionismo e uma paixão desenfreada por seu trabalho, entre o amor e o ódio. “É preciso morrer algumas horas por dia”, diz no documentário, que tem como ponto de partida seus inúmeros programas de viagens e gastronomia e está disponível na Apple TV (“Roadrunner”, de Morgan Neville).
Bourdain, dono do icônico Les Halles, na Park Avenue, em Nova York, ficou mais famoso pelo personagem do que pelo restaurateur criativo, que começou a vida como um lava-louça, viciado em heroína, magro e escritor compulsivo. O segredo do seu sucesso contraria os tradicionais manuais de autoajuda de coachs, que se multiplicam como baratas. Nada contra a Blattaria; pelo contrário
Obsessivo, detalhista e autoritário, por vezes, Bourdain não conseguia entender por que um fornecedor de peixes para o seu restaurante, programado para as 7h, em Nova York, agia com impontualidade.“Eles não conseguem entender a lógica de nossas cozinhas. Meus chefs não se atrasam e talvez por isso sejam uns beberrões”.
Em estado puro, Tony, como era chamado pelos amigos, era implacável no seu negócio e irritadiço com os diretores de TV – ele é o pioneiro da era de grandes programas de cozinha, os chamados Masterchefs. Xingava, esbravejava diante de uma pequena falha de um diretor e exigia a mesma precisão que o projetou como um chef e um escritor de best seller, como o “Cozinha Confidencial” (Companhia das Letras), que ficou por anos na lista de mais vendidos nos Estados Unidos.
O livro tem a pena pesada como a do seu autor ao trazer ensinamentos aos comensais: não comam peixe às segundas-feiras, pois não é fresco; evitem o famoso brunch de domingo, que será servido com as sobras de comida da véspera; e jamais peça um filé mignon bem passado, apelidado de “assassino” pelos chefs.
Tony Bourdain seguia à risca grandes estrategistas de negócios: saía da piscina quando a água estava aquecida. Dia seguinte, antes de 7h, ele conferia o relatório do seu gerente: brigas, pratos quebrados e algumas coisitas envolvendo homens e mulheres na cozinha. Pancada pura e, às vezes, sexo selvagem.
Por coincidência, um dos mais importantes jornalistas do Brasil, século passado, seguia a mesma regra: deixava a redação de O Globo, na rua Irineu Marinho, às 18h30. Evandro Carlos de Andrade, o diretor, sabia que era impossível fechar um bom jornal sem erros crassos. Dia seguinte, às 5h30, como um Bourdain, fazia o seu relatório com críticas ácidas.
Um jovem subeditor foi brindado com o lápis vermelho: “A solução encontrada para esta página é de uma burrice exemplar”. Ele tinha razão: é inconcebível um editor não hierarquizar a notícia principal por meio de uma manchete. A chamada página bêbada (três colunas no alto da página) ainda é corriqueira nos dias de hoje. Infelizmente.
Da mesma forma, Tony disparava impropérios contra os seus gerentes na busca permanente da perfeição. Ele e Evandro Carlos estariam presos por assédio moral ou seriam vetados como chefes em empresas que supostamente seguem o padrão ESG (meio ambiente, social e governança). Evandro escreveria: “Brasília envia essa babaquice e vocês publicam”.
Era uma denúncia preliminar do TCU (Tribunal de Contas da União), que mereceu a manchete de página, um destaque exagerado. O palavrão era um recado sincero à Editoria de Economia e jamais uma forma de humilhação. Era na linha: “Tenham atenção com esta porcaria”.
Bourdain era um homem sensível, que teve ao seu alcance, desde menino, uma literatura de qualidade. No seu famoso programa de viagens, ele se emociona com a cozinha do Vietnã e, como um crítico das redes globais, afirma ao sorver um café maquiado: “Muito melhor do que aquela porcaria servida no Starbucks”, afirma.
O livro “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, um ponto de partida do famoso filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, foi devorado em sua juventude. Ali estava o roteiro para visitar o Congo Belga, em uma perigosa incursão de seu programa culinário, em que tomou grandes riscos.
Há uma cena ontológica, que vale ser conferida. Nesses programas, ele viajou cerca de um milhão de quilômetros, o equivalente a 26 voltas em torno da Terra.
E seguem tiradas preciosas: “Eu sempre ensino aos meus chefs: tomem por dia dez comprimidos de aspirina com Tylenol”. Ou esta: “Uau. Está me pedindo para chutar o saco de Papai Noel na televisão, sabe?”, respondeu, no programa de Larry King, a respeito da sua opinião sobre Emeril Lagasse III (um chef celebridade) e os caras do Food Network.
Anthony Bourdain comete o suicídio, no auge de sua carreira, aos 61 anos.
O ato solitário, incompressível para os amigos e a família, apenas confirma o gesto de um homem em briga permanente com a sua consciência: morto enforcado, em 2018, sem qualquer uso de droga. Bourdain, que mantinha léguas de distância da política, aderiu ao movimento “Me Too” em razão do assédio que sua namorada sofreu do produtor Weinstein. A decisão surpreendeu, mais uma vez, os amigos, que o definiam como um grande contador de histórias. O documentário está repleto delas.
Publicado em: https://exame.com/colunistas/coriolano-gatto/os-ensinamentos-do-empresario-anthony-bourdain-tema-de-nova-producao-da-apple-tv/