Opinião: O fim da desoneração de Haddad e o filme “Outsourced”: o Brasil não é a Índia

Com essa dinheirama da desoneração, seria possível finalizar a usina nuclear de Angra 3, que é essencial em nossa matriz energética

Fernando Haddad assumiu o difícil cargo de ministro da Fazenda sob o signo da desconfiança, tanto por parte do mercado financeiro − e aqui eu me refiro aos grandes atores e não a personagens travestidos de “faria limers” − quanto pelos áulicos do PT, ávidos de criarem um ambiente de discórdia, como se não bastassem os enormes desafios do país. Haddad, ex-prefeito de São Paulo, sabe que a ausência de responsabilidade fiscal piora o grau de investimento e, com isso, será impedido de receber capitais externos no momento em que a nossa balança comercial bate recordes, a inflação cai, os juros seguem uma trajetória de recuo e há oportunidades à vista no setor de energia, agronegócio e infraestrutura.

Ao vencer a batalha do fim da desoneração, com o apoio decisivo do seu chefe Lula, demonstrou a racionalidade econômica. Hoje, 17 setores consomem, por ano, R$ 20 bilhões em vantagens que têm a transparência de uma caixa-preta de algumas empresas de varejo. É melhor não citar os nomes, todos sobejamente conhecidos. O mais impressionante é que segmentos como o de call center e o de empresas de ônibus, que prestam serviços de péssima qualidade à população, são aquinhoados com a bonança. É como no filme “Despachado para a Índia” ou “Outsourced” (2006), em que, de forma bem-humorada, é tratada da tragédia de um call center, na Índia, onde a mão de obra custa muito pouco e não existe a proteção ao trabalhador.

Com essa dinheirama da desoneração, seria possível finalizar a usina nuclear de Angra 3, que é essencial em nossa matriz energética, seguindo, dessa forma, o bem-sucedido programa da França, que passou ileso à guerra na Ucrânia, pois não dependia do gás da Rússia. Ou investir em programas de infraestrutura e de produtividade. O Brasil, de acordo com estatísticas internacionais, ocupa posições inferiores nos dois quesitos, a despeito do PIB de US$ 2 trilhões.

O programa de desoneração é uma espécie de mesada para ricos e desvia os parcos recursos públicos para investimentos que vão multiplicar o emprego na economia em diferentes áreas do conhecimento. A lei 334/2023, vetada por Lula, menciona que o benefício vale para “as empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens”. De certa forma, os jornalistas são beneficiários da desoneração. Basta conferir o CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) de cada grande empresa jornalística, conforme o veto presidencial.

Algumas entidades empresariais lembram o discurso ultrapassado dos anos 1970: com o fim da desoneração, as empresas irão demitir, como se o corte de pessoal fosse um instrumento de produtividade e não uma decisão de empresários que se acostumaram aos cartórios e aos regimes especiais tributários, distribuindo bônus generosos aos seus acionistas e executivos. Ou seja, a eles próprios, pois muitos acumulam cargos de donos e de executivos. Parece que copiam a cartilha do ineficiente Sistema S: dinheiro fácil para beneficiar apaniguados, algo que é uma verdadeira jabuticaba. Como se sabe, as cifras bilionárias desse sistema têm como origem a taxação sobre a folha de pagamento das empresas.

Não há critérios racionais que possam medir a qualidade do gasto. A fiscalização, como se sabe, é precária e a influência no Congresso e no Executivo é alarmante. Sabe-se, por exemplo, que uma gráfica do Senai, na Tijuca, Zona Norte no Rio, tem um custo muito superior ao de uma congênere situada a menos de 10 quilômetros. A razão é simples: o empresário privado consegue obter ganhos de escala frente a uma empresa gerida com ineficiência.

Há uma vasta literatura sobre o tema que prova que os tais 17 setores cortaram empregos formais nos últimos dez anos, diferentemente de outros segmentos da economia, como o agronegócio. Da mesma forma, nenhum dos 17 setores desonerados apareciam entre os sete que ocupam mais da metade dos trabalhadores.

Um caso ilustrativo da desoneração é o de uma empresa de call center, que abocanhava 35% do mercado, na década passada, e pediu ao então ministro da Fazenda, Guido Mantega, o fim dos encargos dos salários, que consumiam quase 80% dos seus custos. A contribuição previdenciária seria drasticamente reduzida, o que, lá na frente, causaria um problema explosivo na Previdência Social. É evidente que a empresa e o ministro não pareciam estar preocupados com as contas públicas. Os grandes clientes da empresa eram as companhias de telecomunicações e bancos. Ambos exigiram a sua cota-parte na redução dos tributos. E assim foi feito.

A história termina mal para o contribuinte − esse eterno idiota − e tem um final feliz para os executivos: a empresa sai do Centro do Rio, onde pagava um aluguel modesto, e transfere o negócio para a Avenida Paulista, dobrando o custo. O número de trabalhadores cai de 120 mil para 90 mil e os executivos se locupletam com bônus milionários, mesmo diante dos resultados magros da companhia. No fundo, a redução de impostos causou mais desemprego, concentrou a renda e aumentou a despesa pública. O Rio perdeu 5 mil empregos.

Sabe-se que o Congresso Nacional, sempre defensor do interesse do incauto contribuinte, vai reagir ao veto do presidente Lula. O senador Ângelo Coronel (PSD-BA) já avisou que haverá mudanças no veto do presidente, o que obrigará o eficiente ministro da Fazenda a abrir uma nova negociação com os nobres parlamentares. Não há dúvida de que o Senado vocaliza o interesse dos famosos lobbies e não o do contribuinte. A ver.

Haddad está certo. Não se trata nem de uma meia-entrada, mas de um almoço grátis para a elite. O Brasil não é a Índia do filme “Outsourced” por uma razão simples: aqui o país constrói um modelo de desenvolvimento sustentável, tal como preconizado pelo engenheiro Eliezer Batista, o verdadeiro criador da atual Vale S/A. Não é possível rasgar o suado dinheiro público.

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