Há críticas de todos os lados e lobbies encastelados para fazer prevalecer os seus benefícios
O escritor João Guimarães Rosa costumava dizer aos amigos, segundo o relato do cronista e diplomata Otto Lara Resende, que era melhor fazer pirâmides a biscoitos, numa clara alusão a evitar o duro trabalho diário de uma crônica na época de ouro dos jornais – anos 1950 – quando o Rio, capital da República, chegou a ter 15 veículos diários, entre matutinos e vespertinos. A tão decantada reforma tributária, a mãe de todas as reformas dos últimos 40 anos, segundo a opinião pessoal de Carlos Ivan Simonsen Leal, presidente da Fundação Getulio Vargas, cuja instituição completa 80 anos em 2024, parece escalar montanhas intransponíveis, mesmo com todo o mérito da equipe envolvida, cuja redação inicial começou à época do então ministro da Economia, Paulo Guedes, e que agora ganha corpo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sob os auspícios do incansável Bernardo Appy. Noves fora todos os esforços de gerações anteriores para alterarem o Código Tributário Nacional (CTN), que teve como grandes artífices, em 1966, os advogados Gilberto de Ulhôa Canto e José Luiz Bulhões de Pedreira.
Há críticas de todos os lados e lobbies encastelados para fazer prevalecer os seus benefícios: desde os profissionais liberais a setores relevantes da indústria – que já gozam de regimes especiais – ao de segmentos relevantes da área de serviços. Cada um quer chamar a reforma para si, o que pode elevar o IVA (Imposto sobre o Valor Agregado) para mais alto que o dos países ricos, aqueles que compõem a OCDE, a organização que reúne as nações desenvolvidas com regime democrático. O IVA, como se sabe, incide de forma não cumulativa e é adotado em 170 países, sendo que há variações e dosagens em cada um deles para evitar que o poder central sufoque os entes subnacionais –estados e municípios. A coluna, devido às suas limitações, não entrará nos detalhes técnicos da reforma tributária a caminho, até mesmo porque há uma vasta literatura – para o bem e para o mal – sobre o tema. A ideia é lançar, sem qualquer soberba, as bases provocativas, da mesma forma que Sócrates, nos famosos Diálogos de Platão, o fazia de forma brilhante e questionadora a seus discípulos.
Por essa razão, é indiferente se o número atinge 25, 26 ou 27% como carga tributária. Ninguém sabe, com rigor, o imposto pago por uma empresa de médio porte. As grandes lançam mão de planejamento tributário refinado e, dessa forma, fica ainda mais complexo saber o valor da alcunha. E contratam grandes bancas de advocacia para questionarem eventuais cobranças indevidas – o contencioso é de R$ 5,5 trilhões ou dois terços do PIB brasileiro, entre a União, os estados e os municípios.
O fato é que o impacto nos setores produtivos é gigante, e uma parcela formada por 20 milhões de empresas, de acordo com os cálculos precisos do professor e tributarista Heleno Torres, titular da Escola de Direito da USP (Universidade de São Paulo), será enquadrada no Simples (faturamento de 4,8 milhões ao ano). Nos Estados Unidos, por exemplo, que tem o PIB – o conjunto de bens e riquezas produzidos – 11 vezes maior que o do Brasil, o valor, à guisa de incentivar o empreendedorismo, não passa de US$ 400 mil (ou perto de R$ 2 milhões ao câmbio atual). Por que o Simples não poderia ter um teto menor, da mesma forma que os incentivos – todos louváveis – concedidos à indústria e aos segmentos que conseguem ter um lobby mais azeitado? Não mereceriam um pente-fino?
Faz sentido proteger setores – nem preciso citá-los, cara leitor e caro leitor – que há décadas convivem com mesadas do Estado e são incapazes de competirem com outros países como a China? Será que estamos condenados ao fracasso a ser um triste trópico, nas palavras do antropólogo Lévi-Strauss?
O agronegócio prosperou não foi porque a carga tributária é muito menor, como apontam análises simplistas de economistas de botequim, mas pela eficiência de seus agentes econômicos, que criaram regras flexíveis para a contratação de mão de obra e, ao mesmo tempo, produziram grãos de excelente qualidade, a ponto de exportarem para nações da envergadura de uma China, com um PIB um pouco menor do que o dos EUA. Por enquanto. Mato Grosso, citado pelo goiano Ronaldo Caiado em recente seminário promovido pela FGV, produz 100 milhões de toneladas de grãos por ano. Uma fronteira agrícola que passa à margem de um Brasil obtuso, recheado de regras e benesses para um segmento do funcionalismo público. A Embrapa, empresa fundada no governo Geisel (1976-1979) e que agora sofre o aparelhamento de um pedaço do Estado, é o melhor exemplo da atitude colaborativa do governo federal com os grandes empresários e pequenos agricultores. O Brasil, mesmo a despeito dos céticos de plantão, é viável, desde que a livre iniciativa possa se desenvolver sem escadas ou compadrios. Via de regra, o pobre sempre paga a conta pelas políticas populistas, e a classe média sofre uma grande desidratação, à medida que a concentração de renda ganha proporções superlativas.
É preciso derrubar o aforismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860), no seu clássico “A Arte de Escrever”:
A burrice e a maledicência são permitidas: “ineptire est juri gentium” [a inépcia é um direito de todos]. Em compensação, comentar a burrice e a maledicência é um crime, uma insurreição contra os bons costumes e todas as convenções. Trata-se de uma sábia precaução.
A criação de um Conselho Federativo, no âmbito da bem-intencionada reforma tributária a ser votada ainda neste ano, produz um germe autoritário, que corrói a autonomia dos 26 estados e o Distrito Federal, além dos mais de 5.500 municípios brasileiros. Serão 54 burocratas a tomarem decisões estratégicas e intervencionistas no âmbito da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços), o primeiro no âmbito federal e o segundo no estadual/municipal. A simplificação, tão decantada pelos artífices da reforma, não significa que seja melhor do que a complexidade. “Quem disse que andar de carroça, mais simples, é melhor do que um carro”? brincou o deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ), durante seminário da FGV, economista e especialista em matérias no âmbito fiscal.
De fato, pensar fora da caixa – um jargão de autoajuda – pode soar tão falso quanto pensar dentro da caixa. Ou o velho aforismo: o ótimo é inimigo do bom. Não faltam exemplos na história mundial de que o liberalismo exagerado ou o intervencionismo do Estado podem produzir desastres econômicos, que serão pagos por muitas gerações. Nem sempre é possível ter a convergência de um Franklin Delano Roosevelt, que governou os Estados Unidos do início dos anos 1930, em plena depressão econômica, até perto do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, quando estava às vésperas de completar o inédito quarto mandato pelo voto direto. FDR foi a exceção de que todo bom político persegue até hoje: reconstruiu o Estado, criou grandes agências reguladoras, fez alianças com os dois partidos rivais (Democrata e Republicano) e conversava com o povo por meio do rádio, tudo devidamente treinado em uma época em que a comunicação corporativa dava os seus primeiros passos. Por conta da poliomielite, ele andava de cadeira de rodas, o que era irrelevante para o grande público, que no fundo quer experimentar de seu governante duas grandes virtudes: a melhoria da sua renda com políticas públicas adequadas e a liberdade para criticar e empreender sem as amarras do Estado. FDR fez tudo em dobro e ganhou quatro mandatos, o último inconcluso.
Agora, falar em isenção de 1.300 produtos para uma cesta básica, como aponta a reforma, é algo insidioso, sem as devidas amarras institucionais. De modo geral, ensina o jurista Heleno Torres, nascido em um município pobre de Pernambuco e à frente de uma tradicional banca em São Paulo, a cesta do pobre é composta por arroz, feijão, carne, verdura, óleo e outros produtos essenciais, mas não por dezenas de mercadorias que podem custar ao Erário perto de R$ 50 bilhões em isenções. Torres é o autor intelectual da legislação que propiciou a repatriação de capitais no valor de R$ 70 bilhões, em 2016.
Como não existe almoço grátis, dizia o economista Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976, o contribuinte, que não é representado no Congresso Nacional, como ressaltou Heleno Torres, vai pagar a conta. E a sustentabilidade da dívida sempre pode passar por percalços, dada a instabilidade em manter as contas públicas sob controle. Segundo opinião pessoal do presidente da FGV, Simonsen Leal, como engenheiro e de formação sólida em Economia e em Matemática, sem um orçamento equilibrado da União, não haverá uma democracia completa, aquela baseada em que cada homem ou mulher é um voto.
Não custa lembrar da velhinha de Taubaté, personagem criado pelo escritor e humorista Luis Fernando Veríssimo, que acreditava no ditador João Figueiredo, o último do ciclo militar. Ela saberia que nessa supercesta caberiam os lobbies de todas as espécies. É importante manter o tão saudável crescimento antropomórfico do brasileiro, que cresceu mais de 10 centímetros em três décadas, o que é resultado do desenvolvimento econômico, a despeito dos eternos pessimistas de plantão. E isso não foi em razão da algaravia tributária, mas resultado de políticas públicas que geraram o crescimento, ainda que o número seja medíocre, mas não tão negativo como insistem analistas enviesados, aqueles que pensam com o fígado. Nem preciso citar os nomes. À direita ou à esquerda, sabe-se da importância do conhecimento não convencional, evitando-se dessa forma a peruca, o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Essa falsa erudição, nos ensina o mestre Schopenhauer, não tem uma adaptação própria. Essa fragilidade é contida na tão propalada reforma tributária. O Brasil tem pressa e aguarda justiça fiscal que possa contemplar os 32 milhões de cidadãos que convivem com situações de vulnerabilidade social.