A âncora fiscal e a infraestrutura social vão garantir a estabilidade em 2023

Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, receita mudança no teto de gastos e uma agenda civilizatória democrática

O pensador inglês conservador Michael Oakeshott (1901-1990) foi um crítico de mudanças abruptas na sociedade, o que poderia trazer grandes danos às instituições. Há uma frase dele, pontuada por vírgulas como ondas suaves em um oceano, que cristaliza o seu ideário: “Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica”.

O economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, aprecia a sabedoria de Oakeshott ao afrontar posições excessivamente liberais na economia e, por vezes, o que chamou de visão simplista do mercado financeiro. “Pode ser que a nossa institucionalidade não seja boa, mas é preciso mantê-la enquanto não houver a certeza de mudança”, diz. São tempos turbulentos, frenéticos e, às vezes, horripilantes, engrossados pela longa Guerra na UcrâniaSchymura, 61 anos, presidiu a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) do último ano do governo FHC 2 até janeiro de 2004, com Lula 1, quando passa a comandar o Ibre, dando grande impulso ao Instituto, fundado em 1951 pelo liberal Eugênio Gudin (1886-1986), o criador do curso de Economia no Brasil.

Como boa parte dos seus colegas, ele considera inevitável a mudança no teto de gastos públicos — “hoje não passa de uma peça de ficção” —, desde que seja mantido o equilíbrio nas contas públicas. Não se trata de uma licença para gastar. Ele defende uma espécie de gatilho no momento em que houver perda de receita. Registre-se que o próprio Ministério da Economia estuda uma nova modelagem para esse instituto. Isso não significa perseguir de forma permanente números robustos de superávit primário. “Isso virou uma tara”, afirma em tom de brincadeira e uma dose de deboche.

âncora fiscal e a infraestrutura social são, em resumo, os grandes desafios do próximo presidente da República. O novo mandatário abrirá uma grande negociação política com o Congresso Nacional para alcançar o ajuste necessário do teto — haverá a correção pela inflação mais uma taxa do crescimento do PIB em 2022, receita o economista — sem comprometer o gasto público, que teve uma contração no governo Bolsonaro, mesmo com as recentes medidas contidas na PEC das Bondades e no chamado Orçamento secreto.

Para comportar o aumento das despesas com a saúde, a educação, o meio ambiente e a cultura, será criado o novo teto de gastos.

“O país continuará solvente”, diz, ainda que o STF possa obrigar a União a devolver os recursos drenados pelos estados para a redução do ICMS incidente sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações.

“Eu não sou pessimista”, afirma Luiz Guilherme Schymura, defensor do grande aumento de investimentos públicos em infraestrutura (hoje é de apenas 1,7% do PIB, segundo a ABDIB), independentemente das centenas de bilhões que serão aportados pelo setor privado em razão da mudança em marcos regulatórios, promovida pelo atual governo.

Em conversa com a coluna, ele mergulhou em outros grandes temas da economia evitando, a todo custo, qualquer tentativa de fulanização da política econômica. Schymura não se enquadra em rótulos e cita o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984):

“Não me pergunte quem eu sou nem me diga para eu permanecer o mesmo”.

Reformas

“A reforma tributária dialoga com a eficiência da economia, dando uma racionalidade maior ao sistema de cobrança de impostos e reduz a pressão sobre a indústria. A economia fica mais produtiva. A reforma administrativa tem o papel de aliviar o custo do sistema de serviço público sobre as contas do governo e oferece uma dinâmica moderna na carreira do funcionalismo. Um modelo mais contemporâneo da prestação de serviço público. Há um amadurecimento em relação à reforma administrativa, e será relevante no próximo governo.”

Produtividade

“A produtividade é um problema sério e é afetada diretamente pela grande desigualdade social no país, onde as políticas públicas demoram muito tempo para serem efetivadas. Trata-se de um processo lento de aprendizagem. Veja o exemplo do combate à inflação. O Plano Real (1994) foi um sucesso ao estabilizar a moeda devido a experiências pregressas, que começam em 1986, com o Cruzado. Isso vale também para o Bolsa Família, que começa a sua implantação como um programa social focalizado, ainda no governo Sarney. Foi um processo lento e gradual até chegar no atual estágio. O mesmo vale para o Minha Casa, Minha Vida e muitas outras iniciativas de governos, que passam por correções e aprimoramentos ao longo de anos. Nenhuma delas brota de uma alma iluminada. A reforma da Previdência vem desde os anos 1990 e foi aprovada apenas em 2019″, diz ele.

“Há diferentes grupos de interesse. São gastos muito dinheiro e tempo, o que afeta a produtividade, tema muito falado pelos governos, mas, na prática, nada acontece, dada essa grande desigualdade. A reforma tributária contribuirá para uma melhoria da produtividade, que é ridiculamente baixa”.

“O Brasil, infelizmente, vive em função dos ventos, como à espera de um choque de commodities. Se há um vento desfavorável, tudo piora com rapidez. A produtividade vai mal porque é uma agenda complexa de país, a qual não fica restrita à economia. Trata-se de um processo civilizatório democrático, como o combate ao racismo, a inclusão dos índios, a proteção à Amazônia e assim por diante”, completa.

Indústria

“A nossa indústria até surpreende pelo resultado, dado que é forte pagadora de impostos (nos últimos 40 anos, o setor encolheu de mais de 30% do PIB para meros 11,2%). A taxa de juros é alta, o que impede o financiamento, pondo a trava no seu desenvolvimento. A pá de cal é que a indústria compete com o agronegócio. É ela quem paga o preço de produção em reais e uma taxa de câmbio apreciada. Na prática, o agronegócio, o minério de ferro e o petróleo fazem muita pressão sobre o câmbio”, acrescenta ele.

“A indústria trabalha com um real valorizado, o que a torna pouco competitiva. Insisto: o câmbio fica apreciado em razão dos bens primários. É a conhecida maldição do petróleo: as demais indústrias não conseguem sobreviver em um país que predomina a produção daquela commodity. O real permanece valorizado não por decisão de um governo, mas pela força do agronegócio, que paga pouco imposto, relativamente, em relação à indústria. Como sobrevier em um ambiente desse? Não há mágica.”

Indicadores

“Há indicadores positivos na economia, como a queda da taxa de desemprego. Note, porém, que a taxa de participação é baixa, há muito subemprego, condições de trabalho ruins, o salário real caiu e as perspectivas para a economia em 2023 não são boas. Essa taxa de desemprego é igual ao mesmo nível de anos atrás? Não, porque o salário piorou. A economia vai crescer 2% neste ano, mas em 2023 a projeção da minha colega Silvia Matos aponta para uma recessão de 0,4%. Pode ser que consigamos crescer 1%, dependendo das medidas de política econômica do próximo governo e de um ambiente internacional neutro. O resultado fiscal de 2022 será bom, mas não é sustentável — há reajuste do funcionalismo represado, a conta do ICMS dos estados (referente às transferências no âmbito da PEC das Bondades). Possivelmente, o STF vai obrigar a União a ressarcir os estados por conta das perdas ocorridas com o ICMS. O Auxílio Brasil continuará em R$ 600, o que é positivo. Tudo isso pressiona a política fiscal. O governo conteve investimentos em áreas essenciais, como a educação, a saúde, a cultura e a proteção à Amazônia, o que dificilmente ocorrerá em 2023. A pandemia causou uma evasão escolar colossal, o que será perceptível daqui a dois ou três anos”, explica Schymura.

“Eu não imagino o mundo de Poliana. Em qualquer lugar do mundo, o Congresso não é tão generoso, bonzinho, pois precisa atender a interesses específicos pelos quais senadores e deputados foram eleitos de forma legítima. O importante é evitar a turbulência nos mercados com uma dinâmica assertiva do lado fiscal”, complementa.

Não é um desafio intransponível. Há muita sensibilidade no país para a questão da pobreza e, ao mesmo tempo, em manter a responsabilidade fiscal. É razoável fazer concessões, com o aumento do Auxílio Brasil e atender aos caminhoneiros com a redução do preço dos combustíveis. É o jogo da política”, finaliza.

Agenda

“Eu não sou favorável a esta agenda de Primeiro Mundo para o meio ambiente, mas não precisa sair destruindo as florestas, o ecossistema. Há um meio termo. A ideia é explorar de forma sustentável os recursos naturais para gerar o aumento do PIB. Por essa razão, não pode haver a barbárie, com madeireiros e garimpeiros ilegais”, diz.

“Há muitos avanços nas últimas décadas com a estabilidade da moeda em razão do Plano Real, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o combate a todo tipo de preconceito (raça e gênero). Esse conjunto faz parte de um arcabouço institucional vitorioso. Foram conquistas difíceis que necessitam ficar perenes”, conclui.

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