Eles superaram o preconceito racial e defendem a inclusão como política para assegurar a democracia
Pergunte a uma mulher negra e a um homem negro, ainda que bem-sucedidos em seu ofício, se já foram alvo de discriminação racial. A resposta é aquela que você imagina, tal como aconteceu no século passado, nos Estados Unidos. A música “Strange Fruit”, cantada em 1939 por Billie Holiday, tornou-se símbolo na luta por direitos civis na América. “Os negros são os Estados Unidos, uma mistura de tudo o que consideramos norte-americano: um pouco negros, um pouco brancos, um pouco índios. E o som lento e arrastado de Holiday era o som de seu tempo: as pessoas na época tinham tempo para ouvir histórias.”*
Os economistas Renê de Oliveira Garcia Jr. e Vilma da Conceição Pinto, dois expoentes da profissão, conhecem a dor em suas trajetórias profissionais, mas nem de longe são adeptos de modismos identitários, circunscritos a um pequeno mundo que perpetua, com viés ideológico contrário, o mesmo ódio do repressor à igualdade de gênero e de raça. Renê e Vilma são o retrato da superação em um país em que domina a desigualdade social e racial, apesar de avanços institucionais nas últimas três décadas.
Ambos os economistas têm trajetórias diferentes, mas em comum foram forjados na vetusta Fundação Getulio Vargas, onde aprenderam o rigor técnico, a honestidade intelectual e a ideia de transmitir o conhecimento para novas gerações sem uma visão maniqueísta. Ter a mente aberta para todas as correntes de pensamento.
Renê, atual secretário estadual da Fazenda do Paraná, teve o privilégio de conviver com economistas que formam um elenco estelar − seriam necessárias muitas colunas para descrever cada um deles. Vai de Mario Henrique Simonsen aos estrangeiros Stanley Fischer, Franco Modigliani, Lawrence Klein, Rudi Dornbusch, passando por Aloisio Araujo, Fernando Barbosa de Holanda, Carlos Langoni e os contemporâneos Carlos Ivan Simonsen Leal, Sergio Werlang e Rubens Penha Cysne. E guarda uma grande admiração pelo trio Daniel Valente Dantas, Dório Ferman e Paulo Guedes, com quem mantém uma ótima convivência profissional. O seu chefe, o governador Ratinho Jr., 22 anos mais novo, o trata, em entrevistas, como o grande mestre da FGV e amigo do ministro da Economia. “A Fundação era uma bolha. Ali eu estava protegido”, diz Renê por meio de videoconferência numa longa conversa em que aparentava grande disposição para os seus 63 anos, depois de escapar da Covid-19.
Vilma Pinto, a primeira mulher a dirigir a Instituição Fiscal Independente (IFI), subordinada ao Senado, vem de uma família de baixa renda e começou a trabalhar aos 16 anos na área de auditoria do Plaza Shopping, em Niterói (RJ), onde nasceu. Quando veio a crise global, em 2008, se interessou por Economia ao assistir o telejornal ao lado do pai, que era pescador e apreciador de notícias. Da TV foi um pulo para conhecer a profissão de economista, desistindo de cursar Administração ou Contabilidade. Vilma deu duro para obter uma formação de excelência na Uerj, tendo trabalhado em um call center como jovem aprendiz enquanto cursava Economia. Teve passagem pelo IBGE na área de inflação (Índice de Preços ao Produtor), caminho que por pouco trilharia na FGV, caso não fosse uma opção inesperada durante o processo seletivo: a oportunidade para estagiar com política fiscal, área que hoje domina com proficiência técnica “A política fiscal é que me achou”, diz.
Como Renê, foi pesquisadora do FGV Ibre e impressionou os seus pares pelo vasto conhecimento de contas públicas. Fez o mestrado na EPGE em economia empresarial e finanças. O seu mentor na FGV foi o professor José Roberto Afonso. Vilma tem fala mansa e é capaz de explicar um tema complexo como quem troca uma boa prosa durante um café. A sua mãe, que trabalhou como gari, é uma grande amiga de jornada. Renê é agitado, emenda assuntos complexos em variadas áreas do conhecimento. Tem uma biblioteca de 15 mil livros, no Rio, e se orgulha de ter chefiado a colega Vilma, em uma consultoria dada ao governo do Paraná.
Renê sentiria na pele a primeira discriminação em um conhecido banco de investimentos carioca. Fora indicado para o emprego, ainda estudante na EPGE, pelo seu mestre Mario Henrique. O executivo reprovou por sua cor o candidato − que já tinha o status de monitor na FGV Ebape. O velho professor, perplexo com a recusa, tentou contemporizar o jovem talento e, mais adiante, ofereceu uma oportunidade muito melhor. E continuou a convidá-lo para as tertúlias às sextas-feiras, em sua sala no 10º andar da FGV, ou no seu refúgio nos fins de semana na casa situada na Granja Comary, em Teresópolis (RJ).
A grande discriminação ainda estava por vir, depois de uma trajetória em corretoras e bancos, além da passagem pela CVM − governo Collor −, tendo sido, aos 29 anos, o mais jovem diretor da autarquia. Era um time de feras: Ary Oswaldo Mattos Filho, Luiz Leonardo Cantidiano e Nelson Carvalho. Convocado para ser uma espécie de controller do governo Benedita da Silva (RJ), em 2002, viu a chefe ser discriminada em reuniões com governadores. “Eles olhavam para ela de forma transversal.” Benedita aceitou a indicação do supersecretário também por ser negro como ela. Foram dez meses que mudaram o cenário político. Do caos proposital deixado pelo antecessor Anthony Garotinho, candidato à Presidência da República, veio o saneamento fiscal e a tranquilidade dada à campanha vitoriosa de Lula.
Renê deu um cavalo de pau na economia e, sem qualquer ligação com o PT, foi decisivo na gestão do governo fluminense. Em uma passagem pelo setor privado, em São Paulo, conviveu com o duplo preconceito da Faria Lima: “Eu sou mulato e carioca”. Em uma das reuniões, ouviu de alguns executivos que ele não passava de um boçal. A etimologia da palavra, explica Renê, indica escravo negro, recém-chegado da África, sem falar o português.
O economista deu o troco depois em uma reunião do banco, em que provou o despreparo da equipe, o que se confirmou mais tarde com a mudança e uma promoção conferida pelo novo CEO do conglomerado: um período sabático na França com direito a um curso no prestigioso INSEAD, em Fontainebleau.
Vilma Pinto, de 32 anos, não foi alvo de preconceito direto no seu ambiente profissional, mas conviveu com diversas situações como a de ser monitorada por um segurança em um supermercado. Ou em um shopping center, ao perguntar onde ficava a área gourmet, recebia como resposta se ela estava em busca de um emprego ou se não estava se referindo à praça de alimentação. Em outro momento, ao alugar uma casa de praia, após uma conversa em frente à residência, uma mulher desejou a Vilma um bom trabalho. Por tudo isso, ela está convencida de que é importante, sem qualquer radicalismo, participar da Rede de Economistas Pretas & Pretos, a Repp.
Os dois economistas convergem para o mesmo ideário quando o tema é política fiscal. Vilma aponta a preocupação com o peso dos juros altos nos gastos públicos − um salto de 3,8% do PIB em 2020 para os atuais 6,3%. Renê, cuja gestão na Fazenda ajudou a atrair R$ 140 bilhões de investimentos diretos para o Paraná em quatro anos, sabe que a conta da redução do ICMS incidente sobre os combustíveis, energia elétrica e telecomunicações vai chegar no próximo ano, sendo que a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevê a perenidade. “Será preciso uma grande negociação política”, afirma o secretário, prevendo as pressões de grupos legítimos para o aumento de despesas nas áreas da saúde, educação, meio ambiente e cultura. O secretário defende a necessidade de fortes ajustes fiscais nos próximos anos e a inevitável mudança no teto dos gastos, o que, na prática, ocorreu em 2022.
Neste cenário, ele apoia a ampliação dos programas sociais, levando em conta que “60 milhões de brasileiros estão alijados”. Vilma faz a conta da manutenção do Auxílio Brasil em 2023 − na LOA é previsto R$ 400 ante os R$ 600 atuais até 31 de dezembro para 21,6 milhões de famílias. “Faltam R$ 51,8 bilhões”, calcula com rapidez, enquanto concede a entrevista por videoconferência. “A política é determinante para as escolhas certas para a economia, o que significa a inclusão social e o combate à discriminação racial.” Renê Garcia cita uma frase atribuída a Winston Churchill: “Você sempre pode contar com os americanos para fazer a coisa certa − depois que eles tentaram todo o resto”. Ele completa: “O Brasil vai acabar fazendo a escolha certa, desde que combata a exclusão social, que pode se transformar em um forte passivo em termos de representação democrática”.
*Prefácio do livro “Strange Fruit – Billie Holiday e a biografia de uma canção”, de David Margolick, Ed. Cosacnaif